Vulnerabilidade e Pandemia

30 de março de 2020 - 09:21 # # # #

Autor: João César de Freitas Pinheiro, Ph.D

A evolução darwiniana nos levou a ser um animal artificial. Não acredito em revolução cognitiva, como diz Yuval Noah Harari, mas em evolução cognitiva que durou centenas de milhares de anos. Se raciocinarmos em termos de que a naturalidade dos animais se encontra mais apoiada em instintos do que em pulsões e de que quase tudo que empregamos no viver é inventado por nós, então, realmente somos artificiais, apesar dessa natural artificialidade ter sido também construída de forma darwiniana na interação com o ambiente.

Artificialmente, desenvolvemos as inteligências linguística, musical, lógica, matemática, visual, espacial, corporal, cinestésica, interpessoal, intrapessoal, naturalista, espiritual, cultural e existencial, além de outras, inclusive esta da moda, a “inteligência artificial”, que engloba robótica, automação nanotecnologia e outras inovações atuais, que não foram descritas por Gardner, em “Estruturas da Mente”, 1983. Deveriam arranjar outro nome para ela, pois todas as inteligências do Homo Sapiens, animal de rebanho e de manadas, são naturalmente artificiais.

A revista Exame publicou, em 2015, uma matéria de Marina Demartini que cita várias ameaças que podem destruir a humanidade, este “animal inteligente” que ocupa privilegiadamente o planeta Terra. Ela afirma que pragas, armas nucleares e até o desenvolvimento tecnológico podem provocar a extinção do ser humano e do mundo em que vivemos.

Enumera: possibilidades de impactos de asteroides, baseando-se em Donald Yeomans, da NASA; uso de bombas nucleares causando mortes por radiação e o inverno nuclear que dá fim à agricultura; nanotecnologia usada na fabricação de armas; erupção de um supervulcão, com base nos estudos de Bill McGuire, diretor do Centro de Pesquisas Benfield Hazard, na University College London; aquecimento global, liberando gigatoneladas de gases causadores de efeito estufa existentes sob a calota polar no Ártico que impossibilitarão a agricultura; inteligências artificiais descontroladas que poderiam destruir o ser humano e tudo que ele valoriza; e, claro, pandemias como esta do Covid-19, se não puderem ser estancadas a tempo.

Uma das mais devastadoras pandemias na história humana foi a Peste Negra (1346 a 1353), que matou cerca de 200 milhões de pessoas quando a população mundial era em torno de 450 milhões. A bactéria Yersinia pestis, transmitida através de pulgas dos ratos, vitimou um terço da população do continente europeu. Possivelmente surgiu na Ásia Central, sul do Himalaia, onde os Mongóis de Gengis Kahn guerreavam, veio pela rota da seda, atacou em ondas de epidemias as cidades medievais e somente veio desaparecer totalmente no século XIX.

Mas, em 2018, a OMS classificou a Peste Negra como uma infecção re-emergente depois de registrar 3.248 casos no mundo entre 2010 e 2015m, com 584 óbitos. No Brasil, o último registro em seres humanos é de 2005 e o Ministério da Saúde acredita em dois focos naturais: a região Nordeste e o município de Teresópolis, no Rio de Janeiro. Entretanto, onde houver saneamento básico precário há ambiência favorável à bactéria, hoje felizmente combatida com antibióticos.

A gripe espanhola, a tuberculose, o ebola, a gripe aviária, mataram milhões de pessoas em todo o mundo, apesar dessas doenças estarem controladas e existirem pessoas resistentes ao agente patogênico, vírus ou bactéria, o que tornam seus descendentes mais resistentes. A Gripe Espanhola foi a primeira de duas pandemias causadas pelo vírus Influenza H1N1. Uma de janeiro de 1918 a dezembro de 1920, que infectou 500 milhões de pessoas, um quarto da população mundial na época, com estimativas de até 100 milhões de mortos, e outra, ocorrida entre abril de 2009 e agosto de 2010, com mortalidade estimada em até 500 mil pessoas, conforme estudos de Fatimah Dawood, do Centro de Controle e Prevenção de Enfermidades de Atlanta, EUA.

Os morcegos parecem ser um dos principais reservatórios de vírus potencialmente terríveis para o ser humano e o Coronavírus é uma de suas nefastas doações. Como bons Homo Sapiens, exterminadores das espécies, desde que estabelecemos racionalismos e nos multiplicamos na Terra, poderíamos exterminá-los. Ora, sejamos inteligentes e não cruéis conosco mesmos. Respeitemos mais o habitat dos morcegos.

David Quammen, autor de Spillover Animal Infections and the Next Human Pandemic (Infecções de Animais Transmissores e a Próxima Pandemia Humana), ainda sem tradução no Brasil, é enfático ao dizer que as pandemias originárias de zoonoses são uma resposta da intervenção humana no meio ambiente. Na sua pulsão de se expandir para dominar, o Sapiens invade o terreno alheio e traz problemas de lá.

Os vírus pulam de animais para outros há muito tempo, até se sentirem seguros, se estabelecendo e se multiplicando nos organismos até serem expulsos por condições que lhes são adversas. É natural que “desejem” viver e se proliferar como qualquer espécie. Qual não “quer”? E quando se alojam nos humanos, estes reagem à invasão e podem ganhar ou perder a guerra.
O Hantavirus pula de roedores. O Lassa, que provoca febre hemorrágica, também pula de roedores. O da febre amarela salta de macacos. Os vários Influenza saltam de pássaros selvagens para aves domésticas e depois para as pessoas, depois de viverem se transformando dentro dos porcos. O sarampo pode ter saltado para nós a partir de ovelhas e cabras domesticadas. O HIV-1 foi um presente dos chimpanzés. Mas, hoje, uma grande quantidade de novos vírus vem pulando para os humanos provenientes de morcegos.

Vieram dos morcegos para o ser humano os vírus Hendra, Marlburg, Raiva, Ebola, Nipah, Sars, Tioman e Melaka. A Sars, Síndrome Respiratória Aguda Grave, foi contida depois de fazer um grande estrago na China no início dos anos 2000. É provocada por um Coronavírus, o SARS-CoV-1, cujo parente causa a Covid-19 e que foi batizado de SARS-CoV-2. Presente de grego dos morcegos.

Quase 25% de todos os mamíferos conhecidos são morcegos. Cavalos, vacas e suínos atraem morcegos, facilitando o contato com o ser humano. A bióloga brasileira Helen Regina da Silva Rossi considera que a destruição do habitat natural dos morcegos compromete o comportamento deles. Como ela, acredito que eles são animais importantes para o meio ambiente e não devem ser perturbados, perseguidos ou mortos.

Eles contribuem para a estrutura e dinâmica dos ecossistemas, são polinizadores, dispersores de sementes, predadores de insetos que causam pragas agrícolas, fornecedores de nutrientes e deram ao Sapiens a ecolocalização, o biossonar ou orientação por ecos. São considerados animais silvestres brasileiros e protegidos por lei. Os inimigos não são os morcegos, mas sim os SARS-CoV-2 ou Covid-19.

Na guerra contra esses inimigos, a Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, está coordenando o ensaio clínico Solidarity da Organização Mundial de Saúde – OMS no Brasil, atuando em 12 estados. A iniciativa está testando a eficácia de tratamentos para pacientes com quadro mais grave em 18 hospitais. Os testes estão sendo aplicados em 1.200 pacientes hospitalizados com Remdesivir Lopnavir mais Ritonavir Cloroquina Hidroxicloroquina com Ritonavir e Interferon 1 A.

Aos poucos, a humanidade vai avançando no campo de batalha contra o Coronavírus. Quatro pacientes que estavam na UTI em estado grave no Hospital Igesp, em São Paulo, receberam alta após sete dias de uso de hidroxicloroquina em associação com outros medicamentos. Dante Senra, médico coordenador das UTIs do hospital, foram dadas 12 altas hospitalares de pacientes confirmados com Coronavírus após avaliação criteriosa dos protocolos internacionais.

Enquanto escrevo, hoje às 6 horas do dia 29 de março de 2020, um mapa mostra em tempo real que já existem 657 mil casos confirmados e 31 mil mortes pelo vírus no mundo. O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom pede para que as pessoas fiquem em casa e afirma que isto faz efeito contra a pandemia. O mal, essencialmente respiratório, entra pelos olhos, nariz e boca, afetando as células da mucosa do fundo do nariz e da garganta. Para se reproduzir, porém, o Covid-19 usa proteínas em forma de lanças que penetram nas membranas das células e uma vez lá dentro delas consegue se multiplicar.

A célula original passa a infectar outras células. Um só vírus é capaz de criar entre 10 mil e 100 mil cópias. Depois de inflamar a mucosa das vias aéreas, os vírus se dirigem aos pulmões. Nessa hora a tosse aparece e a febre começa. Pessoas infectadas nas ruas passam a infecção a outras de diversas maneiras. Até entrar em um elevador junto com uma pessoa infectada assintomática já constitui perigo de infecção. Daí a necessidade de isolamento social para combater a peste.

O chefe de serviços de emergência da OMS, Michael Ryan, apela para que os governos tomem as ações apropriadas quanto ao isolamento social, mesmo reconhecendo a situação terrível que todos os países enfrentam para proteger suas economias e seus sistemas produtivos. Segundo ele, o intuito maior agora é salvar vidas humanas. O fortalecimento da infraestrutura de saúde é fundamental, com expansão da oferta de respiradores, EPIs, desinfetantes, leitos hospitalares e UTIs.

Mas, o que pensa o governo federal do Brasil sobre isto? O presidente da república está contrário ao isolamento social. Está perdido em meio a mediocridades, crendices, questiúnculas politiqueiras, ineficácias e ineficiências, demonstrando ignorância e despreparo para o exercício do cargo, constituindo-se em um grande risco para toda a população brasileira e mundial. Ainda bem que governadores dos estados, como o governador do Ceará, estão tomando as precauções sugeridas pela OMS.