Opinião: Alimentos, quais perspectivas antropológicas?

21 de julho de 2020 - 12:58 # # #

João César de Freitas Pinheiro, Ph.D

Estamos vivendo a adoção de tecnologias que permitem uma grande interação e o início de uma integração, por enquanto desordenada, do mundo físico, digital e biológico. Hora de filosofar. Pensar a antropologia, a sociologia e a economia ecológica dos alimentos. Vejamos as principais tecnologias da revolução científica ligadas à chamada Indústria 4.0 para depois abordarmos um pouco da antropologia dos alimentos. A Manufatura Aditiva 3D, a Inteligência Artificial (IA), a Internet das Coisas (IoT), a Biologia Sintética e os Sistemas Ciber Físicos (CPS) já são reais possibilidades de fusão dos mundos físico, biológico e socioeconômico.

Manufatura Aditiva ou Impressão 3D é a adição controlada de material para fabrico de objetos, formados por variadas peças, constituindo uma montagem; Inteligência Artificial é a computação avançada que simula a capacidade humana de raciocinar, tomar decisões, resolver problemas, com softwares e robôs automatizados, executando variados processos e tarefas melhor que os seres humanos; Internet das Coisas consiste na conexão de objetos à Internet, executando coordenadamente determinadas ações, por exemplo, veículos autônomos que se comunicam para definirem melhores mobilidades, velocidades e trajetos em vias urbanas com
segurança de tráfego e economia; Biologia Sintética diz respeito a tecnologias de ponta nas áreas de química, biologia, ciência da computação e engenharia para construção de novas partes biológicas, tais como enzimas, células, circuitos genéticos e redesenho de sistemas biológicos existentes; Sistemas Ciber-Físicos fazem com que todo objeto físico, uma máquina, uma linha de produção, uma fábrica, seja digitalizado para ter um irmão gêmeo digital capaz de reproduzir todos os processos no mundo digital.

Vista esta realidade, passemos a apreciar como os alimentos se relacionam com ela, trazendo à baila primeiramente os aspectos relacionados com a Antropologia da Alimentação, que é uma área de pesquisa da Antropologia. Claude Lévi-Strauss, autor de “O Cru e o Cozido” definiu nesta obra a passagem do Homo sapiens do Estado de Natureza para o Estado de Cultura, após o domínio do fogo.

Estou falando de centenas de milênios atrás, ainda dos tempos da Revolução Cognitiva quando nossos ancestrais esperavam as hienas terminarem suas refeições para se aproximarem e comerem com segurança os restos de carniças e tutanos. Milênios foram longos e fastidiosos até a Revolução Agrícola de 30 mil anos atrás; séculos também o foram, mas não os breves séculos da modernidade e os aceleradíssimos anos do início do III Milênio e deste século XXI. Na caminhada histórica chegamos aos destacados estudos de Luís Câmara Cascudo e Gilberto Freire. O primeiro abordou os pratos típicos brasileiros e o segundo analisou a importância do açúcar na culinária e na economia nacionais.

Reflito se ainda guardamos prevalente no Brasil e no Mundo o simbolismo da alimentação, as comidas sagradas, os tabus religiosos envolvidos na alimentação, os mitos alimentares, essas coisas da cultura popular dogmática e da pseudociência. Para se determinar o grau de prevalência do simbolismo no hábito alimentar do brasileiro há que o confrontar com as condições de pobreza e miséria da grande maioria da população. Há necessidade de medir periodicamente as permissões, as proibições alimentares e jejuns regulados pelas normas católicas romanas, evangélicas, islâmicas, judias, cristãs ortodoxas, do candomblé, do xamanismo, do hinduísmo, do budismo, com caracterização das variações da oferta e da procura em função da teoria da escassez, da capacidade de consumo e da distribuição de renda.

O consumo de carne bovina e suína, por exemplo, é limitado e até mesmo excluído por várias religiões, como as adventistas, os seguidores da hare krishna, a católica, na quaresma e semana santa, que optam por peixes ou alimentação vegetariana, encurtando a cadeia alimentar, reduzindo a ingestão de proteínas. Continuam neste século XXI, após o iluminismo e o modernismo, determinadas práticas da Idade Média, a partir do século V, época em que o cristianismo começou a se fortalecer na Europa e a igreja católica se tornou uma instituição de grande influência e poder. É impressionante como ainda são vigentes o jejum como sacrifício em homenagem a Deus, a alusão ao sangue derramado por Jesus Cristo, dentre outros tirocínios inerentes à autoflagelação alimentar como forma de alívio de culpas, de perdão dos pecados e de pagamento de promessas aos santos.

Segundo o pesquisador Carneiro (1993), as regras alimentares religiosas servem como rituais que buscam instaurar disciplina e técnicas de autocontrole frente às “tentações”. O jejum é uma técnica de tentativa para eliminar vontade, castrar o prazer e ao mesmo tempo permitir uma alteração da consciência até a obtenção de êxtase. O objetivo de tais regras é evitar o prazer produzido pelo alimento e, claro, estabelecer relações de poder. Seja o prazer oriundo do sabor e da quantidade ingerida, tornando o alimento o mais insípido possível, seja evitando alimentos que sejam demasiadamente afrodisíacos. Os herbários dos conventos medievais consideravam cenouras e alcachofras fontes de excitação sexual. As regras budistas eliminam até mesmo a cebola, a cebolinha e o alho por considerarem que esses alimentos “inflamam as paixões”.

Seja como for, um estudo da AT Kearney afirma que 60% do consumo mundial de carne, em 2040, não será mais proveniente do abate de animais. O relatório desta empresa de consultoria estima que 35% da carne será produzida em laboratório e 25% terão origem vegana, com base em produtos oriundos de vegetais semelhantes em aparência e sabor. Atualmente, apenas 15% dos produtos agrícolas são destinados diretamente ao consumo humano. A maior parte da produção de grãos e vegetais é utilizada para alimentação de animais a serem abatidos para consumo de carne. A previsão da consultora é de que até 2040 apenas 1/4 das plantações será destinado aos insumos para os animais. Esta pesquisa, realizada por especialistas do mundo inteiro demonstra estar em marcha um redesenho da evolução agrícola-pecuária no âmbito da revolução científica com sérios impactos na economia mundial.

Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), cerca de 1 bilhão de pessoas dependem da criação e produção animal para a sua sobrevivência e a demanda por tais alimentos crescerá 70% até 2050. A OCDE e a ONU divulgaram em seus relatórios que a produção mundial de carne deve crescer mais de 40 milhões de toneladas até 2028, para alcançar 364 milhões de toneladas anuais, 13% a mais em comparação com a média registrada de 2016 a 2018. Neste contexto, o Brasil é um dos cinco maiores produtores de carne do mundo, ao lado da China, Estados Unidos, União Europeia e Rússia.

Do ponto de vista da economia ecológica, há graves consequências da atividade agropecuária para os ecossistemas. O setor ocupa 1/3 das terras aráveis de todo o mundo, com a decorrente degradação de 20% dos pastos e de 70% das áreas sem vegetação. A criação e produção animal usam 10% do consumo total de água pelos seres humanos, gerando poluição pela utilização de fertilizantes inorgânicos, hormônios, agrotóxicos e pesticidas. Emite gás carbônico em uma taxa maior do que todas as emissões combinadas dos meios de transporte.

Uma análise feita por Soares, 1989, sobre o consumo de alimentos tidos como naturais, levanta a noção de “pureza” em relação à depuração do que é artificial ou poluído. Puro é o que seria integrado ao corpo, ao ecossistema e ao cosmos de forma espontânea no âmbito de uma subjetividade equilibrada. Muitas famílias, principalmente de pais mais jovens das classes médias, em muitas cidades do Brasil, acorrem aos sábados às feiras de produtos orgânicos para adquirirem produtos alimentícios naturais, livres de agrotóxicos, misturando-os aos industrializados. Não são completamente vegetarianos, macrobióticos, ayurvédicos e orgânicos. Preferem mixagem. Tem havido um esforço do Núcleo de Tecnologia e Qualidade Industrial – Nutec para acreditar as propriedades destes alimentos “alternativos”, sem abandonar a certificação dos industrializados, pois a busca de legitimidade científica na preocupação com os hábitos alimentares deve cobrir os interesses das populações como um todo.

Após este preâmbulo, vamos ao que une os alimentos à Indústria 4.0. Já é viável a fabricação de comida através do processo de fabricação aditiva com uso de matéria-prima comestível e produção de variados pratos. A produção pode ser feita desde a sobreposição de camadas até métodos mais complexos. No mercado existem opções de impressoras 3D de comida relacionadas com as dietas, isto é, o equipamento certo para a dieta escolhida. Basta preparar os ingredientes, coloca-los dentro da máquina e solicitar que ela imprima a comida. Será uma tendência de produção generalizada, considerando o aumento do grau de conhecimento e conscientização das pessoas a respeito de saúde, ecologia, alegria de viver e sobre as relacionadas especificações físicas, químicas e biológicas dos alimentos. A metrologia e certificação de alimentos em laboratórios confiáveis, acreditados, passarão a ter muito maior exigência em curto prazo.

A Inteligência Artificial já proporciona o uso de informações para melhorar o planejamento de estoque de alimentos em centros de distribuição e lojas de varejo com base nos produtos mais procurados pelos consumidores. O reabastecimento de estabelecimentos comerciais com volume e variedade correta de produtos alimentícios já pode ser feito em função da redução de perdas por vencimento de validade e do atendimento das demandas. A compra de insumos para produção de alimentos começa a ser otimizada em consonância com a agricultura de precisão e melhorias nos processos de fabricação com redução de desperdícios e maior previsibilidade da demanda. Isto provoca redução do custo de capital.

Mike Harden, da empresa de aceleração tecnológica ARTIS Ventures, afirma que a Internet das Coisas impactará a segurança alimentar de forma marcante no monitoramento no nível de unidade e teste de produtos com a tecnologia que já existe. Por exemplo, um surto de Escherichia coli, causador de graves intoxicações alimentares, pode ser evitado de imediato. Imagine um refrigerador inteligente cujo scanner ótico alerte para um necessário recall de uma verdura ou fruta, indicando onde foi comprado o alimento contaminado. Vários dispositivos conectados à Internet das Coisas em toda a cadeia de suprimentos e rastreamento no nível da unidade de produto, tornando os recalls mais rápidos e permitindo que as empresas identifiquem exatamente onde os produtos contaminados estão localizados e quais foram consumidos.

A Embrapa tem estudado o uso de tecnologias disponíveis na Biologia Sintética, como, por exemplo, a dos transgênicos para possibilitar o desenho de novas vias metabólicas, gerar novas características fisiológicas, modelar o controle do desenvolvimento das plantas, criando e redesenhando genomas. A ideia é melhorar a produção de novas culturas por meio de técnicas de engenharia biológica para produzir vegetais alimentícios.

Na agricultura de alimentos, os Sistemas Ciber Físicos podem coletar informações sobre o solo, o clima e muitos outros dados para criar sistemas de precisão de gerenciamento agrícola. Podem monitorar constantemente a irrigação, umidade, saúde da planta, procurando manter as condições ambientais ideais.

Aqui termino estas reflexões muito preliminares e incompletas sobre o que nos afeta atualmente em relação às mudanças antropológicas dos setores da alimentação, parabenizando o recente encontro sobre alimentos promovido pelo Nutec, coordenado pelas Dras. Mayra Garcia Maia Costa e Crisiana de Andrade Nobre.